A história do povo eterno é longa, estendendo-se por milênios, incluindo anos bons e ruins, tranquilos e turbulentos. Na sua própria terra e na Diáspora, entre as nações e como um povo livre, os judeus aproveitaram longos períodos de convivência pacífica durante os quais fortificaram sua fé num único Deus, introduziram o conceito do Shabat, sua crença na Bíblia e nos ensinamentos dos profetas. Algumas vezes, entretanto, em dias difíceis e escuros, tiveram que lutar contra inquisidores e perseguidores. Foi assim durante a epopéia nazista. Aquilo que sofreu o povo de Israel na Europa nazista ainda está sem classificação. Um número incontável de jovens foi forçado a deixar suas casas, deixar suas famílias, foi levado na poeira e forçado a trabalhar até a morte. Incontáveis outros tornaram-se heróis, resistindo e sobrevivendo para então tornarem-se testemunhas valiosas da barbárie ocorrida.
Quando tentamos explicar o inexplicável advento do nazismo e a morte de seis milhões de judeus no Holocausto, às vezes ponderamos que possa ter acontecido pelo livre arbítrio humano e a relutância de Deus em embotar a liberdade até dos assassinos nazistas. A afirmação judaica clássica é que Deus criou os seres humanos com liberdade e, no exercício desta liberdade, os seres humanos podem se comportar com uma crueldade inimaginável para com os outros. Ainda assim, subjetivamente, psicologicamente, muitos de nós ficamos com um amargo sentido de descontentamento. Então devemos nos perguntar: Como lidamos com tal descontentamento? Para onde vamos daí?
A dimensão para este desafio passa pela memória, pela divulgação e pela conscientização de todos. Só assim poderemos prevenir uma próxima tragédia de proporções outrora inimagináveis.
É isto o que sabiamente comemoramos a cada ano. É a memória da tragédia coletiva e dos atos de heroísmo, é o caráter educativo, passando de geração em geração, o testemunho pessoal que autentica a história.
Como bem explicou um jornalista que visitou um gueto na Polônia dias após o final da guerra. Ele contava que depois de ter visitado o gueto local, retornou à rua principal da cidade, com seu trânsito e tumulto cheio de gente e de carros, e este fato levou-o de um mundo de horror inconcebível a outro, de rotinas cotidianas. Uma parede muito estreita e poucos portões separavam mundos tão diferentes. O que os cidadãos de um mundo sabiam sobre seus vizinhos no outro mundo? O jornalista então se questionou, se contasse aos outros, eles o ouviriam? E se eles ouvissem, poderiam acreditar? Por isso, a importância destes heróis e sobreviventes, por isso essa voz não deve calar. Qualquer cidadão com um mínimo sentido de ética tem como obrigação pessoal apoiar e assegurar a existência de organizações que eduquem cada jovem sobre o horror nazista. E ninguém é mais vigilante nesta missão do que o Sherit Hapleitá.
A associação dos sobreviventes israelitas da perseguição nazista – Sherit Hapleita – fundamentou mais eloquentemente do que qualquer outra associação, as consequências ideológicas da “grande catástrofe.” Outros judeus pelo mundo afora ouviram ou leram sobre a tragédia. Este grupo vivenciou-a diretamente. Portanto, sua reação é mais direta, mais intensa, mais responsável. Fortificado por seu próprio heroísmo e martírio e pelo legado deixado por seus parentes mortos, o Sherit Hapleita – em nome da magnitude de 1 e meio milhão de crianças assassinadas, dois milhões e meio de mães e viúvas mortas e dois milhões de pais e irmãos falecidos – sempre exigiu que o povo judeu tivesse a atitude de renascer como povo e de alertar sobre a possibilidade de novas perseguições. Nada desqualifica mais a insanidade de Hitler do que o renascimento pós-guerra a que assistimos do povo judeu. Esta é a nossa maior vingança.
O Sherit Hapleita é também sustentáculo de uma atitude específica de justiça social, pois despido de qualquer posse material, tendo sido submetido aos rigores do trabalho escravo, vivenciou a experiência inesquecível de uma vida comunitária onde o companheirismo valia muito mais do que qualquer bem material, parco ou inexistente.
E a coragem e a esperança destes heróis sobreviventes não datam de agora. Durante os anos de horror e de luta pela vida, durante os anos de crematórios e batalhas partisans, mesmo à beira da morte quase certa, esses bravos homens e mulheres expressavam as esperanças do povo eterno nas palavras trágicas mas corajosas do hino dos partisans:
Nunca diga que esta é a última Estrada
Embora o dia cinzento encobre o céu azul
Mesmo assim, a nossa hora chegará
E nossos passos de marcha anunciarão: Nós estamos aqui!
Floriano Pesaro, sociólogo, ex-secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo e vereador da cidade de São Paulo.