“Ao avançarmos dos 120 dias de pandemia do novo coronavírus no Brasil, podemos constatar uma série de questões e, uma delas, é que, além dos novos problemas, a crise causada pela doença desnudou uma série de mazelas e conflitos socioeconômicos que permeiam a sociedade brasileira há muito tempo. Uma delas veio à superfície num triste episódio de desacato à autoridade pública no Rio de Janeiro durante a fiscalização da reabertura de bares e restaurantes na cidade. Uma cidadã, incomodada com a atuação dos fiscais no bar onde estava, expôs, num “sincericídio”, uma das fundamentais fraturas sociais brasileiras: “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”.
Florestan Fernandes, em suas obras sobre revolução social, inaugurou a sociologia crítica no Brasil, que questionava a configuração social brasileira como natural e meramente baseada no mérito. Fernandes imputava ao patrimonialismo e às heranças do racismo que, segundo ele, trouxe um misto de sociedade de “classes” com sociedade de “castas” com um forte componente racial. Traduzindo o “sociologiquês”, o Brasil seria uma sociedade onde um indivíduo poderia até, por seus méritos, angariar alguma ascensão, mas um determinado conjunto de signos imporia a ele um limite, tal qual um regime de castas, mas — ao contrário do indiano — não baseado na religião.
A emulação carioca da tese de Fernandes trouxe um desses componentes de forma muito acentuada, a formação acadêmica. Cabe aqui lembrar que o Brasil concorda explicitamente com a engenheira no que se refere a existirem tipos melhores e, portanto, piores de cidadãos quando determina que diplomados universitários devem ter lugar especial quando detidos. Não há, contudo, registros de detenção diferenciada por nível superior em qualquer lugar do mundo.
O mito da democracia racial e da meritocracia ganhou impulso no atual cenário político quando se tenta cobrir as fraturas sociais feitas durante toda a nossa história com um manto de nacionalismo patriótico falso e fraco em seus embasamentos. As elites brasileiras nunca, desde nossa colonização, viram os brasileiros como cidadãos de direitos natos, o que explica também nossa versão peculiar do estado democrático de direito, que vive sob constante ataque. A obtenção dos direitos sociais no Brasil sempre passou pelas “castas” informais, mais marcadamente, da cor, do gênero, da formação acadêmica e, por fim, da situação econômica. A lógica exposta pela senhora no Rio de Janeiro coloca ainda nossa visão distorcida do capitalismo brasileiro, também abordado por Fernandes, ao expor que o funcionário público estava sendo pago com o dinheiro da engenheira civil, o que deveria denotar a ele inferioridade moral, e até mesmo, civil, sob aspecto dos direitos.
Nós, enquanto sociedade brasileira, devemos nos inspirar nos movimentos internacionais como o Black Lives Matter, que buscam corrigir injustiças sociais históricas que ainda, estruturalmente, permeiam nossas relações enquanto cidadãos se quisermos, de fato, sairmos melhores sob algum aspecto, não só da pandemia, mas da crise social, política e econômica que nos espera à espreita.
Floriano Pesaro é sociólogo e foi secretário estadual de Desenvolvimento Social de São Paulo”