Amigas e amigos, profundamente incomodado com o contraste que vivemos no domingo passado, escrevi o artigo publicado na coluna do Fausto Macedo no Estadão de hoje. Compartilho para leitura e comentários.
“No mesmo dia em que o Brasil contou mais de cem mil vidas perdidas por covid-19 no país, um clássico do futebol brasileiro tomava os televisores dos animados torcedores e os bares, ansiosos por clientela desde a reabertura, viram, finalmente, algum movimento relevante. Não se trata da necessidade de lamentarmos todos os dias, embora devêssemos, as milhares de vítimas do novo coronavírus no Brasil, nem do alívio dos bares que buscam pagar suas contas, mas do choque causado em alguns de nós – ainda bem – pela surpresa causada pela substituição do silêncio no dia em que a macabra marca foi atingida por gritos de “gol”, música e muita festa.
Esse cenário do último domingo pode ter uma série de leituras do ponto de vista ético, moral, científico e, até, médico, contudo, me atenho aqui ao sociológico, afinal, uma sociedade que perdera em menos de cinco meses a vida de cem mil dos seus cidadãos não deveria estar, ao menos, reflexiva no dia em que isso se constata?
Embora consideremos que as chamadas “fake news” e a descrença propagada por lideranças políticas tenham dado sua contribuição para diminuir a importância de tantas vidas perdidas frente aos olhos da população, é fundamental termos a humildade para compreender as possíveis razões sociológicas que levam à escassez de empatia na sociedade brasileira com tantas vidas perdidas em tão pouco tempo.
Antes disso, embora largamente divulgado, é preciso entendermos o tamanho da tragédia: para atingir o número de óbitos causados pela covid-19 no Brasil até agora, os casos de infarto precisam ser acumulados em um ano e um mês; já as complicações da pneumonia precisam de um ano e oito meses para vitimar tantos brasileiros; por fim, para vitimar cem mil brasileiros, o acidente vascular cerebral (AVC) precisa de três anos. Caso ainda não tenha ficado graficamente claro, há semanas estamos perdendo vidas para a covid-19 na mesma proporção que perderíamos com a queda diária de dois aviões Boeing 777 sem sobreviventes, 550 passageiros cada.
A despeito de teorias da conspiração que correm livremente nas redes sociais, essas pessoas foram vitimadas pelo vírus da covid-19 e não por qualquer outra razão. São pessoas com famílias, amantes e amigos que não teriam morrido de qualquer outra forma, pelo menos nesse momento, ainda que esse seja nosso inexorável destino, como anda sendo lembrado. Por que, então, não nos escandalizamos? Por que naquele macabro domingo não homenageamos as vítimas com nosso silêncio? Por que comemoramos gols de um campeonato que nem deveria estar acontecendo com música, bebida e festas?
Os brasileiros convivem anualmente com a segunda maior taxa de homicídios (30,5 por 100 mil habitantes) da América Latina, de acordo com levantamento de 2019 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, perdendo a indesejada liderança para a Venezuela, conflagrada há anos. E esse número está em franca ascensão, principalmente, quando levados em conta os homicídios com requintes de violência. De acordo com o mesmo estudo, Nigéria e Brasil, juntos, registram, em média, 28% dos assassinatos de todo o planeta.
Resta-nos pensar sobre um fenômeno parecido com o que Hannah Arendt classifica como “banalização do mal”, parecido porque nada se compara aos horrores do Holocausto. É, sim, no pouco valor que se dá à vida no Brasil que se encontra nosso estado apático frente a tantas mortes de compatriotas.
Penso que essa apatia está relacionada, principalmente, a dois aspectos intrínsecos da nossa sociedade. Primeiramente, como resultado da violência endêmica – criminal e social – com a qual convivemos há anos e que nos torna “acostumados” ao convívio com delitos contra a vida.
Por outro lado, a organização socioeconômica brasileira assentada numa desigualdade social flagrante que gera classes sociais rígidas e acessos completamente díspares à assistência de saúde encontra uma doença que não escolhe cor ou renda. O resultado disso é que, segundo estudo da PUC-Rio, entre as pessoas pretas e pardas infectadas pelo coronavírus mais da metade vem a óbito, enquanto esse índice fica em 38% entre os brancos.
Não era, portanto, de se estranhar que naquele fatídico domingo não houvesse grandes comoções nacionais, mesmo que não-presenciais. No Brasil, a violência é mais presente que o Estado em muitos lugares e a morte é visita indesejada, mas bastante comum para muita gente. O Brasil precisa enfrentar o coronavírus e lamentar, sim, as mortes causadas pela doença, mas, também, precisa reencontrar o valor da vida.
*Floriano Pesaro, sociólogo, ex-secretário estadual de Desenvolvimento Social de São Paulo e ex-deputado federal