Criança abandonada na rua é uma das situações mais abomináveis com a qual uma sociedade pode consentir. Hoje, São Paulo está impavidamente assistindo centenas de crianças e adolescentes abandonados nas avenidas, praças e ruas da capital paulista evadidos da escola, praticando furtos, se envolvendo e sendo envolvidos em atos de violência e perturbação.
Com vínculos familiares e comunitários rompidos, paulistanos encontram no metrô e nas avenidas uma realidade ainda mais dura do que a já lamentável situação da população em situação de rua, porque uma criança de dez anos praticando atos de violência ao relento da sociedade é a materialização do futuro sendo destruído no presente, diante dos nossos olhos.
Esse é um chamado urgente de uma situação que não pode mais aguardar. Urge chamar à responsabilidade todos as instâncias do Estado de Direito para que cesse tamanha violação, não só a Constituição Federal, mas, especificamente, ao Estatuto da Criança e do Adolescente – e à humanidade, em seu limite.
Gestores públicos estaduais e municipais – especialmente da área da assistência social, da saúde e da habitação, promotores públicos, agentes do Judiciário e conselheiros tutelares é passada a hora de estabelecer uma força-tarefa que responda a essa situação de urgência social.
É verdade que o serviço social faz seu trabalho preconizado e tipificado no Sistema Único de Assistência Social, o SUAS, mesmo com inúmeras dificuldades do ponto de vista das precariedades do financiamento de uma política pública não vinculativa, mas isso não basta diante das situações atuais que se colocam com uma grave crise econômica seguida do maior período de escolas fechadas durante a pandemia em todo o mundo.
Isso é possível de ser feito, já foi feito e com sucesso: 3 mil crianças tiradas dos semáforos da capital paulista. Implementando o Programa São Paulo Protege, quando tive a honra de ocupar o cargo de secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social nos governos dos ex-prefeitos José Serra e Gilberto Kassab, tínhamos três princípios: a intersetorialidade, a interinstitucionalidade e a interdisciplinaridade.
A partir da intersetorialidade, entendemos a pobreza e a vulnerabilidade social como um problema multidimensional que não é resolvido imediatamente e nem por apenas uma política pública, todas têm que priorizar o atendimento a diferentes programas e serviços que mudem o destino da criança e de quem vive ao seu lado.
Por meio da interinstitucionalidade, chamamos para a mesa todos os sistemas de defesa de direitos que compõem a estrutura estatal. Cada um com seu papel, mas com foco na tolerância zero com criança abandonada na rua. Criança não nasce nas calçadas, se não tem mãe e pai presentes, certamente tem uma avó, uma tia ou um primo a quem lhe dar guarida e uma última esperança de reconexão com a sociedade.
Por fim, a interdisciplinaridade chama a Academia para perto, é preciso ouvir quem estuda e se dedica, por vezes por toda uma vida, à proteção da criança e do adolescente. Política pública de gabinete nunca foi efetiva sem conhecer a rua, as organizações sociais que fazem a política na ponta e as universidades.
Hoje o desafio é maior e o componente da violência mais presente: vulneráveis, as crianças são aliciadas e expostas à promoção da violência através de furtos com requintes de crueldade, incluindo espancamentos de pessoas por grupos em vias públicas.
As consequências da exposição e promoção de crianças nesse tipo de ação criminal, certamente, tendem a se verificar durante toda a vida. É o divórcio social desse jovem cidadão com a cidade e com a cidadania.
É possível recuperar, se não todas, boa parte dessas crianças que hoje usam da violência para se fazerem vistas nas esquinas da Avenida Paulista. Isso não deve ser transformado num mero compromisso de ano eleitoral, esse é um compromisso geracional, ético e civilizatório. Salvem nossas crianças, salve nosso futuro.”
*Floriano Pesaro, sociólogo