“Em artigo na Folha de S.Paulo, a diretora-executiva da RAPS Mônica Sodré e os sociólogos José Álvaro Moisés e Floriano Pesaro analisam o delicado cenário de recessão democrática vivido globalmente e com alarmantes desdobramentos no Brasil.”
Crédito: Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS)
“Nem só de eleições vivem as democracias
A crise econômica causada pela pandemia encontra outra enfrentada por parte do globo nos últimos 20 anos: a democrática. Pela primeira vez neste século, a maior parte do mundo não é uma democracia. Isso não se explica apenas pelas suas dificuldades em locais nos quais já estava consolidada —como nos EUA e na Europa ocidental—, mas também pelo surgimento de regimes híbridos, que mantêm os aspectos eleitorais enquanto suprimem liberdades de imprensa e de expressão, caso de Hungria e Filipinas.
Sua retração global é sentida em disputas eleitorais enviesadas, vulnerabilidade a rupturas, manifestações populares, desrespeito à oposição, censura à imprensa, esvaziamento dos partidos e dos Parlamentos e perseguições.
Regimes democráticos não se realizam somente com a garantia de eleições livres, regulares e justas. Sua realização envolve o entendimento cotidiano de seus valores, incorporados em suas normas e comportamentos, e a existência de condições, inclusive materiais, que assegurem aos cidadãos a capacidade de interferir nos rumos do país e da política.
Sua superioridade frente a outras formas de organização da vida coletiva se justifica por três aspectos: é a única na qual os direitos de existência, expressão e participação das minorias são respeitados e preservados, as decisões são consideradas vinculativas por excelência e, por fim, na qual se pressupõe aceitação às regras do jogo.
Há, ainda, um aspecto pouco usual, mas que não deve nos escapar: regimes autoritários têm o resultado de seu processo político como algo dado e, portanto, a certeza como seu elemento norteador. São as democracias, no entanto, os regimes nos quais estando o próprio processo político em aberto, estão também seus resultados, permitindo que haja a esperança de que o amanhã possa vir a ser melhor, de que a esperança —o amanhã— venha brindar os filhos de uma maneira que não foi permitido aos pais usufruir.
No Brasil, nosso período democrático mais longevo completou 30 anos e nossa democracia liberal encontra-se sob risco permanente e com gradativa morte de seu vigor.
Morre todos os dias, quando há estímulo da violência por parte de quem ocupa postos de poder. Quando os que ocupam tais posições reivindicam para si a representação exclusiva do povo e seus interesses. Quando os limites entre público e privado ficam quase invisíveis. Quando há esforço para refundar o passado e brigar com a ciência.
Quando a desinformação vira arma e as instituições passam a ser orientadas por uma visão que tem como finalidade esvaziá-las de capacidade. Quando a inserção internacional e, portanto, a capacidade de cooperação e relacionamento externos são comprometidas. Quando não há mais imagem externa a zelar.
Hoje, o vigor da nossa democracia morre também porque, além das mais de 100 mil vítimas fatais de uma nova doença, condenamos o futuro de muitas gerações.
Nossa incapacidade de garantir a preservação da renda, de apresentar um plano crível de recuperação econômica, de aliarmos a retomada ao desenvolvimento sustentável, de enfrentarmos as históricas e agora mais profundas desigualdades, condenam ao âmbito das certezas a expectativa de vida, a esperança e o futuro de toda uma nação.
Mônica Sodré
Cientista política e diretora-executiva da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade)
José Álvaro Moisés
Cientista político e professor titular da USP
Floriano Pesaro
Sociólogo, é ex-secretário de Desenvolvimento Social de São Paulo (2015-2018, governo Geraldo Alckmin) e ex-deputado federal pelo PSDB-SP (2015-2019)”