Floriano Pesaro, sociólogo.
Por algumas vezes, nesse mesmo honrado espaço, abordei sobre as lições que a História nos oferece sobre os riscos da aproximação com governos e regimes de traços autoritários.
Apesar de, reiteradamente, os regimes autoritários mostrarem-se ingratos a tudo e a todos que pode lhes ter servido para manter-se em algum momento, sempre é bom pontuar como esse tipo de governo não é compatível, nem momentaneamente, com nenhum aspecto da comunidade judaica e sua trajetória.
Nas últimas semanas veio à público a notícia de que a Agência Judaica para Israel, que promove em diversos países do mundo a aliá para aqueles que desejam imigrar para Eretz Israel, está sendo alvo de um processo judicial que pede o encerramento de suas atividades em território russo – algo que só ocorrera durante o regime soviético.
A justificativa oficial é que a Agência estaria “armazenando e coletando” dados de cidadãos russos em inobservância à lei local – veiculada pela própria mídia russa, sabidamente acompanhada sob o olhar atento do Kremlin – no entanto, não se verificou, segundo diplomatas israelenses.
Isso porque semanas antes do processo judicial ser instaurado contra a Agência Israelense, autoridades russas fizeram chegar, informalmente, a Embaixada de Israel no país de que o Kremlin estava incomodado com a explosão no número de russos e ucranianos judeus que deixaram o país com o apoio do organismo internacional rumo a Israel.
Esse é apenas o mais recente episódio sobre como governos de caráter autoritário, em algum momento, acabam por colidir de frente com os princípios judaicos, especialmente, no que se refere à promoção da paz, da harmonia e da liberdade entre os povos. Lembro-me, inclusive, de uma história pessoal, envolvendo a imigração de meu pai ao Brasil – Giorgio Edoardo Pesaro.
À época, os judeus italianos, como meu pai, fugiam do regime totalitário de Benito Mussolini que assolou a Itália e foi um dos precursores do que hoje conhecemos como “fascismo” – tipo de governo que soma aspectos populistas e nacionalistas com o reforço do poder estatal se sobrepondo às liberdades individuais com base no culto à figura de um líder.
Meu pai, Seu Giorgio, me conta, quando falamos sobre o assunto, que, no início, Mussolini surgiu na Itália sob um aspecto moralizante – alguém que ouvira as demandas do povo, sempre sujeito indeterminado – e “antissistema”, mas que, no entanto, era necessário para mobilizar as massas em torno de um governo que atendesse os princípios da economia liberal.
Ignorando, portanto, os sinais crescentes de que se tratava de um populista autoritário, a elite econômica, social e as classes médias italianas apoiaram Mussolini como primeiro-ministro – mesmo depois da famosa “Marcha sobre Roma” em que seu séquito, os “camisas-negras”, se tornaram conhecidos na perseguição aos socialistas.
Dentre esse apoio estava, inclusive, setores da comunidade judaica que viam naquele que viria a se autodeclarar ditador italiano alguém que poderia controlar os intentos grevistas e o que se tinha como ameaça comunista na época.
Entretanto, como a História insiste em mostrar, após ter sido nomeado, um dia depois da Marcha, como primeiro-ministro pelo rei italiano, Vitor Emanuel III, como mandavam as leis à época, Mussolini passou a usurpar do poder de seu cargo e, pouco a pouco, foi enfraquecendo as instituições e negando espaço no Governo àqueles que entendiam tê-lo apoiado – como os liberais econômicos e setores da comunidade judaica.
Já em 1925, Mussolini havia obtido tamanho apoio que mudara seu próprio título e passou a se identificar como ditador ou “chefe de governo” não mais se identificando como “primeiro-ministro”.
Assemelhando-se à trajetória nazista na Alemanha, Mussolini, já em 1938, passou a proibir crianças judias e professores judeus nos estabelecimentos de ensino de qualquer natureza, bem como demitiu judeus dos serviços públicos e militares.
Assim, milhares de judeus viram a ideia de um primeiro-ministro de pulso firme se transformar em mais um pesadelo de perseguição em nossa história. Da mesma forma que meu pai, tantos outros judeus italianos podem contar essa história, hoje, daqui do Brasil.
Seja na Rússia de hoje, na Itália de Mussolini ou na Alemanha nazista, onde existem regimes autoritários, da orientação política que forem, não haverá, por muito tempo convivência pacífica, com o povo judeu, suas crenças, valores e instituições calcados, fundamentalmente, na paz e na prosperidade.
Estejamos, portanto, atentos às conjunturas políticas que podem se mostrar favoráveis a uns e outros com perfil menos democrático, mas que pareça, à primeira vista, um “mal necessário”.
O que parece ser, normalmente, é o que se pretende, de fato. Os sinais da Marcha sobre Roma foram bastante claros, mas, infelizmente, o autoritarismo passou incólume e tomou proporções que poderiam ser interrompidas a tempo.”