“Os judeus e as epidemias na História
É sabido que a história do povo judeu é milenar e, assim sendo, carrega uma experiência ímpar que vale ser compartilhada na relação da sociedade com os mais diversos episódios, como as epidemias. Os judeus passaram por todas elas, sendo a mais prógona, a noite da Décima Praga, onde Deus matou todos os primogênitos do Egito, excetuando os escravos hebreus. Compreendendo a evolução da relação do homem com a natureza e o ambiente onde vive, a percepção dos judeus para com as epidemias foi se transmutando de uma concepção essencialmente religiosa para uma científica e baseada em evidências.
Neste abril, coincidentemente mesma época da Décima Praga, nós, judeus, teremos um Pessach diferente: quarentenados em nossas casas devido à pandemia do novo coronavirus, que assusta na virulência e na força com que acomete suas vítimas, mesmo aquelas tidas como jovens.
Hoje é significativo o entendimento de que o isolamento social é a chave, mesmo que temporária, na contenção do espalhamento de doenças virais. Mas, nem sempre foi assim. A compreensão do povo judeu sobre essas doenças era, a princípio, religiosa e entendidas como castigos divinos que só podiam ser aplacados pela misericórdia e por sacrifícios.
Quando uma epidemia matou milhares de israelitas após a rebelião de Corá contra Moisés e Arão, as mortes cessaram quando Arão queimou incenso, o que acalma a ira de Deus. Quando Deus fez com que uma epidemia assolasse o Reino de Israel nos tempos do rei Davi, o sacrifício aconselhado pelo profeta Gade fez com que Deus e sua epidemia cedessem, segundo a Torá.
Esses, contudo, não eram episódios isolados na relação do povo judeu com as epidemias. De acordo com a Mishnah, da Era Comum, quando uma epidemia chega a uma cidade, seus moradores judeus devem se reunir para orar e jejuar em comunidade, no coletivo, portanto, aglomerados.
A percepção de que essas aglomerações causavam mais espalhamento das doenças virais começou a surgir na era talmúdica, entre os séculos III e V a.C. Ainda assim, surgiram timidamente e sem uma determinação clara que se aproxime de um isolamento social.
De fato, o Talmud não parece ser muito afeito a este conceito profilático. Uma de suas passagens nos traz que os estudantes do sábio Rabi Akiva se recusaram a visitar um de seus membros que havia adoecido. Dizem-nos que Akiva foi visitar o aluno renegado e que ele se recuperou, levando-o a ensinar que visitar os doentes os ajuda a se recuperar. Portanto, aqueles que se recusam a visitá-los são tão culpados quanto os que derramam sangue.
Vale lembrar e enfatizar que visitar os doentes é uma mitzvá, afinal, uma obrigação judaica. Ora, Deus havia visitado Abraão enquanto ele se recuperava de sua circuncisão.
Já nos idos do Século XIII, os escritos rabínicos passam a nos indicar o início de ações e recomendações mais concretas acerca da compreensão do espalhamento de uma doença e de medidas para evitá-la no campo da ciência. O rabino contemporâneo, Bahya ben Asher, espanhol (1255-1340) explicou que, durante a praga de Corá, Aaron separou a companhia de Corá do resto dos israelitas “para que o ar ruim da praga não chegasse a eles”. Bahya, então, adere à Teoria das Doenças do Miasma, que permaneceu em voga até o Século XIX, segundo a qual a doença era causada por vapores poluentes no ar.
Lembra do acendimento do incenso que relatamos acima? As leituras do texto da queima dos incensos no Segundo Templo ainda são feitas para atenuar as doenças. Este hábito iniciou-se com o Zohar a partir de uma lenda sobre o rabino palestino do século IV, Rabi Aha, que chegou a uma cidade assolada por uma epidemia. O povo da cidade pediu seu conselho e ele orientou que reunissem seus 40 homens mais piedosos na sinagoga. Depois de estudarem as passagens talmúdicas relativas ao incenso em grupos de dez em cada um dos quatro cantos da sinagoga, a epidemia parou.
Embora as abordagens religiosas sobre as epidemias nunca tenham cessado e, nem se espera que sejam, uma vez que a fé é um componente fundamental da nossa compreensão da vida, os métodos científicos passaram a se desenvolver e serem absorvidos pela comunidade no tratamento de epidemias, a partir do século XVI. O rabino Moses Isserles (1530-1572) foi enfático e determinou que alguém deveria fugir de uma cidade na ocorrência de uma epidemia, dizendo: “Não se deve confiar em milagres ou arriscar a vida à espera dele”.
O trunfo da ciência na compreensão das epidemias pelo povo judeu deu-se mesmo, afinal, no Século XIX, com o avanço da cólera na Europa. Em 1831, o rabino Akiva Eger pediu aos judeus que limitassem o número de pessoas orando em uma sinagoga para 15 a ponto de permitir que um policial garantisse à porta das sinagogas que sua determinação fosse cumprida. Durante a pandemia da gripe espanhola, já no Século XX, algumas sinagogas prestavam serviços ao ar livre em todo o mundo, chegando até a suspender completamente os serviços nos piores momentos.
Devemos ouvir nossos rabinos que sabiamente nos aconselham adicionar as orações penitenciais à oração diária, bem como à leitura dos textos sobre a queima de incenso. Também precisamos sabiamente nos resguardar – na medida do possível de cada um – para que novamente, não só o povo judeu, mas todo o mundo supere mais uma epidemia com evolução, aprendizado e fé.”